Primeira crônica publicada tem Célio Garcia como personagem de um episódio real, chamado de Caio Calvino na história ocorrida no Hospital Galba Velloso.
A Dinâmica de Grupo
Certa ocasião, saí para viagem de uma semana. Na volta, cheguei ao Hospital Santos Olhos às 7 horas da manhã. Na portaria, encontrei-me com o Dr. Karol Potocki.
– Bom dia, senhor diretor.
– Bom dia. Mas não sou diretor. Sou porteiro.
– O quê??
– É isso mesmo.
Afastei-me pensando: o Potocki não anda regulando da bola, ultimamente. Encontrei-me com a copeira e brinquei:
– Bom dia, Elenita. O fogo apaga e nóis não pita!
– Bom dia.
– Ainda tem café, aí?
– Não sei. Pergunte à copeira.
Disse isso e foi embora. Cocei a cabeça. Mais adiante me deparei com a Irmã Sonata, que era a enfermeira-chefe.
– Como é, Irmã, já esterilizou o material?
– Não. Estou indo esterilizar as privadas.
Comecei a ficar preocupado. Nesse momento, vinha passando um estagiário de psiquiatria, o Dr. Cesário. Perguntei-lhe:
– O senhor é, por acaso, a Madre Superiora?
– Não. Sou o médico de plantão.
– Está me gozando!!
– Não. Estou trabalhando.
Completamente zureta, eu precisava de explicação. Resolvi procurar, digamos, o diretor do hospital. Entrei na sala e vi, todo imponente, Aristóteles – o chofer.
– Bom dia, Aristóteles. Você continua na direção…
– É. E tomara que os freios estejam bons…
– Como diretor do hospital… poderia me explicar o que está havendo?
– Perfeitamente. É um trabalho de dinâmica de grupo. Hoje, aqui no Santos Olhos, ninguém vai desempenhar sua verdadeira função. Todos terão papéis diferentes. Com exceção apenas do médico de plantão, porque com urgências clínicas não se brinca.
– Mas quem deu essa idéia?
– O Prof. Caio Calvino. E nós aceitamos.
– Está certo. Vamos ver em que isso vai dar.
– Espere aí. O senhor está escalado como cozinheiro.
– Hein??? Não sei fazer nem ovo cozido!
– Espero que acate as minhas ordens.
Saí dali muito esclarecido, e mais zureta ainda.
O Prof. Caio Calvino, psicólogo social e psicanalista, coordenou no Santos Olhos vários trabalhos de dinâmica de grupo, a convite do corpo assistencial. Tudo isso fazia parte do projeto de uma comunidade terapêutica. E eis que, num dos corredores, trombei com ele.
– Como vai, Prof. Caio. O senhor não acha que este hospital já é, naturalmente, um pouco caótico?
– Parece que sim. Mas, como dizem os homeopatas, o semelhante cura o semelhante. Quem sabe um pouco de confusão é bom remédio para muita confusão?
Aquele foi, na melhor das hipóteses, o mais longo dia do Hospital Santos Olhos. Para descrever o que aconteceu, precisaríamos de um livro, não de uma crônica. Felizmente, para mim, a imaginação do leitor é fecunda. Mas ponha imaginação nisso, pois o que aconteceu foi outra coisa.
No final do dia, houve reunião com todas as pessoas que participaram da experiência. Nenhum morto. Nenhum ferido. Embora todos desmontados. A rotina do hospital permaneceu intacta; o que mudou foi a rotina de cada um. Durante a reunião final, os participantes manifestaram sua opinião.
– Coitado do pessoal da cozinha! São uns heróis! Mudei completamente de ideia a respeito da nossa comida! Ela poderia ser pior…
– E o pessoal da limpeza! Uns mártires! No fim do dia eu fedia tanto que quase me empurraram pela descarga!
– Isso não é nada. E a portaria! Que tumulto! Trombada de carrinho de pipoca!
– Peço perdão à Irmã da Costura: nunca mais vou chamá-la de Traça Velha!
– Peço perdão ao carpinteiro. Coitado do Seu Cupim!
– A gente, que tratava o psicólogo de Pinicólogo!
– O doutor clínico geral, de Pé-na-cova!
– O diretor, de Jurupoca Castradora!
A partir daí, o clima de trabalho no hospital se transfigurou. As pessoas do corpo assistencial começaram a conviver num ambiente de compreensão, respeito e cordialidade.
– Demorou a atender meu pedido, hein? Eu entendo… eu entendo…
– Estou muito ocupado, mas posso lhe dar uma ajuda.
– A comida até que está boa!
– É uma ordem superior? Muito justo…
Até que, aos poucos, tudo foi voltando à normalidade.