Célio, mais atual do que nunca: “É muito difícil dizer bom dia depois de sacar a arma”

A frase do título acima foi pronunciada por Célio Garcia há 15 anos, em 2007. Mas poderia ter sido dita hoje.

Ela ecoa como um estampido, mais atual do que nunca, diante da realidade de violência policial nas grandes cidades do país e do culto às armas que tem sido crescente nos últimos anos.

À época, ele participava de um seminário e estava diante de uma grande plateia formada por policiais militares e agentes de Segurança Pública no auditório do antigo hotel Othon Palace, no centro de Belo Horizonte. A sua fala gerou um forte impacto entre os presentes.

Este texto, portanto, é uma homenagem ao Célio, que completaria 92 anos neste 10 de agosto. Ele inaugura uma nova sessão do Portal, intitulada “Célio, mais atual do que nunca” e aberta a receber contribuições de todos que relembrem episódios, frases ou textos que se encaixem nesse contexto.

Reminiscências de José Francisco

É o caso, por exemplo, das reminiscências do atual ouvidor da Guarda Civil Municipal de Belo Horizonte, José Francisco da Silva, o Chico. Ele conheceu Célio em 1971, quando entrou para o curso de psicologia da Fafich. Em pouco tempo, tornou-se bolsista de iniciação científica do CNPq, orientado pelo seu professor Célio, e  se tornou monitor no Setor de Psicologia Social.

José Francisco foi secretário-adjunto de Direitos Humanos de Minas Gerais, ouvidor de Polícia de Minas Gerais e coordenador-geral de Análise e Desenvolvimento de Pessoal em Segurança Pública do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Atuou também como professor substituto na UFMG e na PUC Minas.

Em depoimento ao Portal, no qual relata o episódio do seminário para os policiais, o psicólogo reforça a atualidade do pensamento do seu ex-mestre:

O Célio continua surpreendente… e surpreendendo!

Ele se tornou uma pessoa muito importante no meu trabalho e na minha vida em diversos projetos. O texto abaixo, escrito pela socióloga Juliana Maron Ferreira, que também trabalhou com ele, retrata um desses momentos especiais.

Certa vez, quando atuava na Defesa Social, onde fui também gestor da Qualidade no Sistema de Defesa Social, comecei a fazer uma pesquisa sobre o comportamento dos policiais e do policiamento, quando me lembrei do Célio e pensei: ele é a pessoa certa para participar desse trabalho e falar sobre o tema!

E não deu outra…

Ao final dos trabalhos, fizemos um grande seminário, e no dia da apresentação dos resultados da pesquisa, estávamos lá no auditório do hotel, diante daquela expressiva plateia de policiais.

O Célio começou então sua exposição, apresentando rapidamente o contexto da pesquisa e, diante de todos, diz a frase que não me esqueço:

“É muito difícil dizer bom dia depois de sacar a arma”

Naquele momento, ele sintetizou tudo o que nós procurávamos compreender sobre o comportamento do policial e da relação da segurança com o cidadão! Foi algo que, realmente, nos deixou muito impactados”.

“Aprendendo a pensar juntos”

José Francisco reforça que a leitura do relato de Juliana é muito interessante para compreender bem o contexto daquele momento. Entre outros cargos, ela foi diretora de Análise e Avaliação do Desempenho Operacional na Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS), de 2007 a 2011, período em que conheceu e trabalhou com  Célio Garcia.

É graduada em Ciências Sociais e mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos pela Escola Superior Dom Helder Câmara (ESDHC) e em Gestão Pública pela Fundação Dom Cabral (FDC).

Ela ressalta:

Foi uma honra trabalhar com o professor Célio. Relembrar nossos encontros é emocionante. Havia sempre um comentário que nos fazia refletir. Na primeira reunião em sua casa, foi impactante entrar em seu ambiente de trabalho.

Todos os que foram até lá sabem a sensação de subir as escadas com livros que ocupam toda a extensão da parede – do chão ao teto.

Todos os que conversaram com o professor sabem a sensação de ser escutado por ele. Explicamos nosso problema. Ele pensou em soluções e nos apresentou uma proposta. Quando a recebemos, sabíamos que não seria uma pesquisa como as demais. A metodologia era totalmente diferente.

Ainda hoje, continuo aprendendo a pensar junto, como ele tentou ensinar, e muitas vezes, teimosamente, resistimos em aprender.

Célio Garcia e a ‘experiência de ser vítima de violência policial’

Juliana Maron Ferreira (*)

Em 2007, foi criada, na Secretaria de Defesa Social do Estado de Minas Gerais (SEDS), atualmente Secretaria de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), a Superintendência de Avaliação e Qualidade do Sistema de Defesa Social (SASD), que tinha em sua composição a Diretoria de Análise e Avaliação do Desempenho Operacional (DAD).

O dr. José Francisco da Silva foi convidado para ser Gestor da Qualidade e me chamou para compor sua equipe na Direção da DAD. A Superintendência tinha como desafio pensar na qualidade das instituições que compunham o Sistema de Defesa Social, ou seja, a própria SEDS, que trabalhava com vários temas, entre os quais os Sistemas Penitenciário e Socioeducativo, a Polícia Militar (PMMG), a Polícia Civil (PCMG) e o Corpo de Bombeiros Militar (CBMMG). Sua atuação baseava-se num tripé de ações: formação e treinamentos dos operadores de defesa social, integração das Corregedorias e avaliação do desempenho operacional.

Tive a oportunidade de dirigir a DAD, a convite do dr. José Francisco, e nela realizar uma grande quantidade de ações de pesquisa. No momento, felizmente, havia uma grande interlocução e abertura para a participação da academia nos debates e nas discussões sobre a política de defesa social.

Nesse contexto, meu trabalho era coordenar, em conjunto com grandes pensadores da área, diversas avaliações sobre a forma como o exercício da segurança pública nas suas mais diversas vertentes se realizava no cotidiano e trazer tais informações e considerações para o debate e o aperfeiçoamento das operações concretas.

Em 2008, por meio de um convênio realizado entre o Governo Federal, via Ministério da Justiça (MJ) e Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP), e o Governo do Estado de Minas Gerais, por meio da Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS) e Ouvidoria-Geral do Estado (OGE), tivemos a oportunidade de coordenar o Projeto de Fortalecimento da Ouvidoria de Polícia – Fase II.

Apenas nesse projeto havia seis pesquisas sendo realizadas com diversos temas. Eram habituais as reuniões para definições metodológicas, estatísticas, amostrais, definições de questionários e tudo o mais que envolve o universo das pesquisas.

Uma das pesquisas propostas no projeto tinha como objeto pensar sobre os momentos em que as coisas não dão certo. Sobre o momento em que, no lugar de operar a segurança, passamos a operar – em nome do Estado – a violência. E em como isso impacta vidas. E em como isso impacta nossa experiência comunitária.

Naquele momento, com um tema tão delicado em mãos, “Experiência de ser vítima de violência policial”, o professor Célio Garcia entrava em cena.

Treinamento dos pesquisadores

Pedimos ao professor Célio para pensar e como pesquisar sobre esse tema que tanto afligia não apenas nós, da SEDS, mas também a OGE, que recebia diariamente manifestações sobre o assunto.

Na primeira reunião em sua casa, foi impactante entrar em seu ambiente de trabalho. Todos os que foram até lá sabem a sensação de subir as escadas com livros que ocupam toda a extensão da parede – do chão ao teto. Todos os que conversaram com o professor sabem a sensação de ser escutado por ele. Explicamos nosso problema. Ele pensou em soluções e nos apresentou uma proposta.

Quando a recebemos, sabíamos que não seria uma pesquisa como as demais. A metodologia era totalmente diferente.

O professor definiu a necessidade de conhecer o significado social e político de ser vítima de violência policial. Mas, antes, fez todo um trabalho para construir um senso de que a violência se caracteriza como atos que variam cultural e historicamente.

Assim, o grupo de pesquisadores precisou passar por um processo de treinamento com o professor Célio. Era necessário assumir uma postura de que não sabemos como a população dos aglomerados urbanos, mais frágil socioeconomicamente e que, em geral, é vítima de violência, vive e convive com ela.

A equipe precisava desconstruir os hábitos de pesquisa, como o de realizar perguntas. Havia um roteiro de entrevista, mas não um questionário. A postura devia ser de “pensar juntamente com as pessoas” que aceitaram participar da conversa/reflexão. Havia a necessidade de não utilizar a violência da linguagem, que estabelece papéis de quem pergunta e quem responde e impõe distâncias.

Os resultados

Para analisar os resultados, cada tema abordado nas entrevistas foi colocado ao lado das frases fornecidas pelos entrevistados. As palavras ou expressões que surgiam frequentemente eram consideradas “fortes”. Tais palavras ou expressões congregavam ou atraíam termos vizinhos que formavam linhas de força e que demonstravam a orientação do pensamento.

O resultado desse trabalho, o professor Célio Garcia definiu como “universo semântico”.

O universo semântico apresentava sequências de palavras ou termos que demonstravam um sentido. Por exemplo:

A sequência que se inicia com o termo “Abordagem”, seguido de “Arma (apontada)” >>> “Domicílio (invasão)” >>> “Tiros Morte” >>> “Consequências” >>> “Mães/Filhos/Implicados”, uma vez disparada, nos conduz quase inexoravelmente a resultados dificilmente manejáveis; sabemos que a saída pode ser lida com a derivação à esquerda ao nível de “Consequências”, ou seja, “Desistência (não mexe com isso não!)”.

Trouxe esse exemplo porque foi o que o professor utilizou para explicar como a lógica da linguagem “conduz, quase inexoravelmente,” a um determinado resultado. Na apresentação do relatório da pesquisa, ele explicou que há uma lógica de escalada. A abordagem e o seu resultado fogem ao controle de seus interlocutores. Ela não passa pelos gestos comuns do ritual da sociabilidade: primeiro gesto (saudação), que leva ao segundo (como vai a saúde) e assim por diante. Com a sequência sendo iniciada nos termos “Arma (apontar)”, é improvável o retorno aos cumprimentos.

A abordagem tem relação com o monopólio do uso da violência que se reserva o Estado de Direito. A não observância desse princípio provoca a intervenção de agentes do Estado. O professor, então, abordou a questão da legitimidade X legalidade, que se situa no alto do universo semântico.

Continuidade da pesquisa

Diante dos resultados alcançados, em 2010, o professor continuou seu trabalho conosco aprofundando a abordagem sobre a legitimidade e a legalidade da atuação policial, os espaços em que os policiais são chamados a intervir – público e privado, o poder discricionário, o saber policial e a invisibilidade da polícia.

Naquela nova etapa, ele propôs uma experiência de conversação para os próprios policiais. Novamente, a proposta foi pensar em conjunto sobre “o que se faz” e “o que se pode fazer” para consolidar uma polícia cidadã.

Considerando os achados da pesquisa anterior, onde se concluiu que a abordagem policial tem um caráter codificado, que se desdobra em etapas e não permite reversão após sua efetivação, percebeu-se a importância da qualidade dessa intervenção, pelos efeitos posteriores gerados aos que são a ela submetidos.

Os policiais refletiram, juntos, sobre os diversos temas; ao final, o professor concluiu que o saber resultante da práxis policial é composto por elementos que devem ser mantidos e por outros que precisam ser revistos para se compatibilizarem com as funções de uma polícia cidadã. Esse saber é essencial para a qualidade da atuação e não se reduz ao saber das ciências jurídicas, incapaz de dar conta dos conflitos do mundo atual em seus diferentes aspectos. A diversidade de saberes tem maior possibilidade de dar conta dos conflitos.

(*) Juliana Maron Ferreira é graduada em Ciências Sociais, mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos pela Escola Superior Dom Helder Câmara (ESDHC) e em Gestão Pública pela Fundação Dom Cabral (FDC).

Trabalhou na Ouvidoria de Polícia, no Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão (NEPE) de 2004 a 2007, quando teve a oportunidade de participar da realização de diversas pesquisas e ações de capacitação relativas ao controle da atividade policial. Depois, foi Diretora de Análise e Avaliação do Desempenho Operacional na Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS), de 2007 a 2011.

Entre 2011 a 2013, atuou na Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão (Seplag) e retornou para o campo das Ouvidorias em 2015, quando assumiu a Superintendência de Apoio Técnico (2015-2019), a Ouvidoria de Desenvolvimento Econômico, Infraestrutura e Desenvolvimento Social (2019-2021) e a Coordenação Técnica da Ouvidoria-Geral do Estado (OGE), onde trabalha atualmente.

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2 thoughts on “Célio, mais atual do que nunca: “É muito difícil dizer bom dia depois de sacar a arma”

  1. Excelente, o texto da Juliana e a leitura que o Célio trouxe à questão é MUITO atual, urgente. Obrigada, João.

  2. Eu não o conheci mas lendo as informações do querido amigo Xico, penso que pessoas como o Célio, Deus nos envia para criar dentro de nossos corações uma pontinha de esperança.
    Obrigada Xico pela mensagem.

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